terça-feira, 18 de maio de 2010

Do descabimento de proposta de emenda à Constituição Federal relativa à sequestro interparental

Em comprimida crítica se deve ter em mente que antes de se consolidarem como embate entre particulares, as disputas ocasionadas pela busca da aplicação de tratado internacional, pode na verdade ser conflito existente entre dois países que disputam a competência para apreciação da matéria jurídica em questão.
É o que ocorre com a Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto regulamentador (Decreto n° 3.413, de 14 de abril de 2000), a qual visa combater o sequestro parental de crianças, instituindo um sistema de cooperação entre autoridades centrais e procedimento célere de restituição do menor ao país de sua residência habitual.
A referida Convenção dispõe que antes de se adentrar nas questões ligadas ao Direito de Família, imperioso é decidir a respeito da existência dos requisitos autorizadores de sua aplicação, previstos em seu art. 4º, e sobre a ilicitude da transferência ou retenção de criança, caracterizada nas condutas descritas no art. 3º, que determinarão o país competente para discutir guarda, alimentos e regulamentação de visitas.
Se aceitar a pretensão daquele que fez o pedido de repatriação, a Autoridade Central, representante do Estado e responsável pelo cumprimento das obrigações impostas pela Convenção, irá transformá-lo em uma pretensão de Estado, pois a cooperação é estabelecida de forma inter-estatal.
Daí porque se atribuiu competência à Justiça Federal para promover o juízo prévio de admissibilidade de aplicação da Convenção, para constatar que as condições exigidas foram implementadas pelo país interessado, e só então quando for o caso, determinar o imediato retorno da criança ao seu país de origem, ou a competência da Justiça Estadual para proferir decisões sobre o destino do menor ilicitamente sequestrado ou retido.
O art. 109 da Constituição brasileira traz as várias matérias de competência da Justiça Federal, tanto na seara cível quanto na penal, delimitando as causas em que o juiz federal está habilitado a atuar.
Segundo o disposto nos incisos I e III do referido dispositivo do texto constitucional pátrio, é da competência da Justiça Federal o julgamento das ações de interesse da União e das causas fundadas em tratados ou convênios realizados em Estado estrangeiro ou organismo internacional.
Claro é o interesse da União na ação de Busca, Apreensão e Restituição da criança sequestrada, não só porque defende a soberania de sua jurisdição e reciprocidade, mas também porque defende os interesses de um cidadão brasileiro em manter contato com o ambiente de suas relações sociais.
Tanto é assim que a Advocacia Geral da União possui legitimidade para ingressar em juízo na defesa do Estado brasileiro quando se vise o retorno de nacional ilicitamente retido ou transferido para outro país ou a permanência deste no território brasileiro.
A ação proposta no âmbito federal não possui o caráter de pedido de antecipação de tutela ou de medida acautelatória, mas sim de pedido fundado na cooperação judiciária internacional inter-Estados sob a forma de assistência direta, com juízo de cognição plena e cujo objetivo maior é a restituição do menor ao país onde tinha sua residência habitual antes da remoção ou retenção ilícita.
Portanto, nesse primeiro momento o conflito é travado entre dois Estados que buscam defender sua competência jurisdicional para apreciação das questões familiares, não sendo necessário se invocar, neste momento, a sensibilidade dos juízes das varas de família, uma vez que ainda não se irá discutir sobre questões atinentes a tais direitos, apesar de o juiz federal levar sempre em consideração a condição peculiar da criança como pessoa em pleno desenvolvimento biopsicossocial, considerando que os interesses do menor devem sobrepor-se a qualquer outro, nos contornos das determinações trazidas pela Convenção, quando de sua decisão.
O envolvimento de autoridades ligadas, constantemente, aos sentimentos oriundos da ruptura da vida conjugal, em nada ajudaria na obtenção dos objetivos trazidos pela Convenção, de modo que se poderia adentrar nas relações familiares, ou em questões culturais, as quais não deverão ser discutidas no primeiro momento, mas tão somente quando se atribuir competência a determinado país para sua apreciação.
É importante esclarecer que o simples fato de alcançar o objetivo de devolução da criança, não garante ao interessado o êxito nas questões referentes à guarda do menor. Mesmo estando desacreditado, por ter praticado a conduta de levar a criança para o exterior unilateralmente, o sequestrador pode apresentar melhores condições para ter a posse do filho.
É assim porque a Convenção apenas considerou que, devido aos fortes impactos que a retirada severa de uma criança de seu ambiente social e familiar pode causar na construção de sua personalidade, as autoridades do país de sua residência habitual, são as que reúnem melhores condições para resolver quem deve manter sua guarda ou em que país deve viver, não impondo qualquer determinação que coloquem as partes em situação de desigualdade após o retorno.
A justiça comum dos estados é o foro competente para as ações relativas ao Direito de Família. A lex domicilii, que rege o estatuto pessoal no Brasil, é o critério que mais atende à esta conveniência. A Lei de Introdução ao Código Civil indica o princípio do domicílio como elemento de conexão a determinar a aplicação da lei brasileira. Dessa maneira, conforme o disposto no artigo 7° da Lei de introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42) funda-se o estatuto pessoal na lei do domicílio, ou seja, na lei do país onde a pessoa tem o animus de permanecer. Para dirimir qualquer dúvida, o Código Civil vigente (art. 70), estabelece o domicílio como o local onde a pessoa estabeleceu sua residência com ânimo definitivo. A recíproca é verdadeira. Pelo mesmo princípio deve o Brasil respeitar a lei do domicílio de crianças filhas de pai ou mãe brasileira, com residência habitual em outro país.
Evidente que à União compete a representação da República Federativa do Brasil no plano internacional (art. 21, I da C.F), na qual se inclui obrigações em matéria de direitos humanos. Nesse caminho, compete privativamente ao Presidente da República "celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional" (art. 84, VIII). A União, porém, carece de competência no plano interno para fazer valer os compromissos assumidos internacionalmente em matéria de direitos humanos, especialmente no tocante à apuração, processo e julgamento de violações a eles perpetradas, o que tem acarretado constrangimentos ao país em suas relações externas. Daí a conveniência de atribuir-se à Justiça Federal competência para o julgamentos das violações mais agudas a esses direitos, como o sequestro interparental. A propósito, escreveu Fábio Konder Comparato:
A organização federal do Estado é decidida, soberanamente, por cada País. Nenhum Estado federal, acusado de descumprir deveres jurídicos assumidos no plano internacional, pode, legitimamente, defender-se invocando o fato de que a alegada violação foi provocada por ato de Governo estadual ou municipal, e que o Governo da União, que representa o País no seio da commitas gentium, não tem competência constitucional para interferir na esfera de poderes reservada a outras unidades da federação. (...) Daí a manifesta conveniência de se incluir a apuração e julgamento desses crimes na esfera de competência federal.
É incontestável que este tipo de violação a direitos fundamentais gera evidentes prejuízos ao pleno desenvolvimento da criança, não só porque foi vítima de ato egoísta por parte de um dos genitores ou parente próximo, que a retirou do convívio com a outra parte de sua família, como também porque foi afastada do ambiente social e cultural ao qual estava inserida e já havia estabelecido fortes vínculos afetivos.
A demora na determinação do retorno de criança abduzida acaba por criar situação que atende aos interesses do autor da subtração, pois dificulta, ou mesmo torna irreversível, a reconstrução dos laços familiares, interrompidos pela prática do ato ilícito. Ficando esta adaptada a um ambiente que nem sempre lhe é o mais favorável.
O que se pretende é assegurar a criança o contato, o quanto antes, com ambos os pais, com o objetivo de protegê-la e permitir a formação equilibrada de sua personalidade. O atraso na solução do sequestro de uma criança pode, certamente, levar a consequências muito graves e permanentes no seu relacionamento com o genitor vítima desta conduta. O afastamento do ambiente familiar ao qual estava inserida pode gerar danos irreversíveis à criança, que não se manifestam de forma imediata.
Diante de todo o exposto, é que se considera descabida a proposta de emenda ao art. 109 da Constituição Federal, principalmente quando fundamentada nos casos previstos pela Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças.
Para que se obtenha bons resultados com a aplicação da referida Convenção, é necessário que os Estados não criem entraves às suas determinações, ou do contrário prejudicariam a segurança jurídica que a Convenção visa construir com sérias implicações nas relações internacionais do Brasil.
Deve-se considerar que a Convenção de Haia de 1980 viabilizou importante mecanismo jurídico, através da cooperação entre os Estados membros, que já contribuiu para solução de milhares de casos de subtração ou retenção indevida de crianças, servindo para o desestímulo da conduta de subtração dos menores de idade do ambiente familiar e social ao qual estavam inseridos. Deve sim a Justiça Federal prestar absoluta prioridade aos processos envolvendo transferência ilícita e/ou retenção indevida de menores. Neste caso vale a máxima recomendação ao legislador de "não mexer com o que está quieto".







FONTE:Marcos Venicius Matos Duarte é Presidente do IBDFAM-CE.

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